lençol para dois
A narrativa de Lençol para dois combina textos e imagens que foram selecionados de meu arquivo pessoal. A parte visual é feita com fotos da minha família nas quais jánão e possível identificar os personagens retratados. Os textos são de velhos cartões postais adquiridos em briques e feiras de antiguidade.
O livro surgiu como exercício de experimentação: criar ficção a partir de um material familiar que teve sua historia interrompida. A apropriação de elementos dispares, reorganizados no projeto de um livro-objeto, estabelece uma espécie de união de memórias desconhecidas e sem dono. Reunidos, textos e fotos permitem configurar uma nova história.
O projeto gráfico também contribui para a construção da narrativa, tanto quanto as fotografias e as mensagens escritas originalmente nos postais. O modo pouco usual de percorrer as páginas do livro – que se abrem e fecham, dobram e se desdobram – constitui um processo análogo ao da rememoração: ao lembrar, vasculhamos os compartimentos instáveis da memória; sempre que uma informação ressurge, outra desaparece, e a ordem das recordações às vezes parece não fazer sentido.
Lembramos por meio de um movimento constante de apagamento, recuperação e reencontro. Em sua justaposição de registros verbais e visuais, e também no momento dinâmico da leitura, Lençol para dois cria uma memória ficcional, que éao mesmo tempo familiar e anonima.
* este livro foi publicado pela Editora Quelônio em 2014, com tiragem de 80 exemplares.
** este livro participou da exposição Fotolivro Brasileiro em Lisboa, Feira do Livro de Fotografia de Lisboa, Portugal, novembro/dezembro de 2015 e foi finalista do Prêmio Miolo(s), categoria Livro de Artista, 2015.
Quem um dia não abriu o antigo álbum de família e se viu diante de uma jovem de cabelo curto com sorriso de Monalisa ou de um rapaz de calção de banho numa praia de rio ou ainda de uma senhora de vestido espaventoso com um bebê no colo que ninguém sabia dizer quem eram, como se chamavam ou o que estavam fazendo ali?
Se um álbum de fotografias existe para que não esqueçamos do que passou, essas figuras desconhecidas – esses fantasmas, essas aparições – se constituem como lacunas na memória familiar. São rostos sem história, corpos sem vida. Maria Helena Sponchiado reuniu os fantasmas dos arquivos fotográficos de sua própria família e decidiu dar a eles uma história.
Nesse gesto, há algo como uma reinvenção da memória, no sentido de que Maria Helena cria ficções a fim de dar coerência ao que lhe chega de forma incoerente e fracionada; há uma vontade de preencher as lacunas. A beleza de seu procedimento reside no modo como ela atinge esse fim: não por meio de histórias inventadas por ela mesma, mas através da montagem ou do alinhavo (daí talvez o delicado bordado à mão na capa do livro) de fragmentos de histórias alheias, apropriados de postais antigos comprados em feiras de antiguidades.
Maria Helena faz, portanto, convergir o que estava deslocado em sua história pessoal com o que havia se desgarrado da história dos outros. Assim, às imagens fantasmáticas, concede vozes igualmente fantasmáticas. E, ao dar voz a seus fantasmas, como um ventríloquo que empresta a sua a seu boneco sem vida, ela lhes permite forjarem para si uma outra existência, para além daquela em que a memória falta.
* texto de apresentação do livro, de autoria de Veronica Stigger.